Ponto de vista

Uma profissional e diversos olhares sobre o cinema do Brasil (Parte 2)

Entrevista com Flávia Guerra

Na primeira parte da entrevista, Flávia Guerra fala sobre o papel dos críticos, do jornalista de cultura e sobre a visibilidade dos filmes brasileiros nos festivais internacionais. Leia abaixo, sua opinião sobre o cinema nacional contemporâneo e os problemas enfrentados na pós-produção dos filmes.

Produção Cinematográfica Contemporânea

O cinema brasileiro melhorou no sentido de profissionalização. Não que não tivessem mentes criativas, mas tivemos a era Collor, que acabou com o cinema brasileiro. As leis de incentivo, por mais que sejam discutíveis em seus detalhes, asseguram uma produção constante. E quantidade traz qualidade. Não se fazem três obras primas por ano com três filmes, você faz trinta para saírem três muito bons. O cinema americano é isso. Eles fazem mil filmes por ano para saírem trinta do Oscar. O governo, o MinC [Ministério da Cultura], a Ancine [Agência Nacional de Cinema], tiveram esta preocupação, por que cinema é uma área estratégica, de telecomunicação, comunicação, vídeo, audiovisual. Por isso, o Programa Cinema do Brasil, por exemplo, que tem a Apex para ajudar que é um órgão de logística, de negócios. É fazer o cinema chegar mesmo. A gente tem Cidade de Deus, como vai fazer ele chegar na Letônia? Entra a Apex com este know-how logístico. A produção melhorou, o que justifica festivais. Você também não faz um festival com três filmes por ano.

Nunca estivemos tão bem, em questão de produção, com exceção da era das chanchadas e dos anos 70. Era uma outra época, em que a cultura do cinema era mais popular, o cinema hoje em dia é muito elitizado. O Brasil tem bastante produção e de qualidade, o leque é super amplo. Acho que temos que ter de tudo, desde os filmes do Didi, até os do Júlio Bressane. O que falta ainda é o tipo de cinema que a Argentina faz muito bem, que é o filme de gente comum. A gente ainda fica, um pouco, ou no “Brasil bizarro” ou no “Brasil extremo”, tipo Cidade Baixa, Cidade de Deus, Madame Satã ou nos filmes comercias demais. O cinema infantil também é quase inexistente, tem a Xuxa, o Didi, quando muito. Acho que agora estamos começando a ter mais filmes deste tipo. O cinema infantil ou cinema para jovem leva muito público, acho que este cinema ainda falta. Em questão de ganhar público ainda temos muito o que fazer. Falta filme como Chega de Saudade: bom, bonito e barato. Não é nenhuma obra prima, mas é um filme de qualidade.

Muita gente diz que a crítica é condescendente com filmes brasileiros, eu acho o contrário, cobramos muito mais das nossas produções, elas precisam ser obras-primas e inventar a roda. Os filmes bons, bonitos e baratos, como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Chega de Saudade, Dois Filhos de Francisco cumprem seu papel. Se a gente quiser tem presença no mercado, também temos que ter estes standards. É igual ao futebol, como vamos ter uma seleção sem times de várzea e regionais? Eu acho que é um problema de produção mesmo e não de qualidade. Se a gente produzir mais, vai ter uma profissionalização mesmo, como nas novelas.

O Melhor da Produção

Eu gosto do Fernando Meirelles, não necessariamente por gostar dos filmes, mas pela projeção que ele consegue. Ele é uma pessoa muito legal, pé no chão, que faz grandes produções e consegue projetar nossos filmes para a indústria. E o filme dele, Cidade de Deus, não tem como não citar. Já o Heitor Dhalia tem uma trajetória interessante. Nina, seu primeiro filme, foi bem barato, e O Cheiro do Ralo, ele fez sem dinheiro nenhum. Agora está no terceiro filme, em parceria com a Fox, de Los Angeles, e quem articulou isso foi o Fernando Meirelles. Então, o Fernando não é só diretor, é articulador também. Soube usar o terreno que ganhou para trazer produções para o Brasil, fazer os filmes dele e da O2, além de dar a chance para outros diretores. Acho que isso é o mais importante, essa consciência de classe.

No sentido de uma produção autoral e, particularmente, de melhor qualidade, eu citaria o cinema pernambucano, pois consegue se fazer com muito pouco dinheiro e é muito criativo. Entram aí o Lírio Ferreira, Paulo Caldas, o próprio Sérgio Machado e tantos outros que não são famosos, que fazem filmes extremamente “brasileiros” e que todo mundo vê. Só não têm mais público por que não chega. Se passassem um Baile Perfumado na Globo as pessoas iriam assistir e gostar. E tem as mulheres também, a Tata Amaral que colocou o Antônia na televisão; a Eliane Café, com o Narradores de Javé, e a Carla Camurati. Se Carlota Joaquina fosse feito hoje, não seria um grande filme, mas quando foi feito a gente estava em uma terra tão arrasada que ele se tornou importante pela coragem dela de fazer e colocar para exibir. E as pessoas estavam tão carentes que foram assistir. Então, acho que é uma questão do cinema chegar nas pessoas e não necessariamente dele ser feito ou não. As mulheres também ganharam mais, pois antes não se falava de diretoras brasileiras, hoje em dia sim. Ainda não citei, mas com certeza o Karim Aïnouz. Com relação aos filmes, eu lembraria do Cidade de Deus, Madame Satã, Cinema, Aspirinas e Urubus, O Cheiro do Ralo (pela produção e distribuição), Um Céu de Estrelas (não tão barato, mas bonito), Santiago e o Edifício Master. Os nossos documentários também melhoraram, quem via os documentários brasileiros no cinema? Hoje em dia, a gente tem Santiago, os filmes do Coutinho, Janela da Alma, acho que nisso a gente ganhou.

Leis de Incentivo e Captação de Recursos

O filme precisa estar adequado com as normas, ter roteiro, orçamento, equipe de produção e então o projeto está de acordo com os critérios dos editais. A seleção é sempre subjetiva, um filme talvez mereça ser filmado, pois a temática interessa, por que vai conseguir público e alavancar a produção. No entanto, mais preocupante do que a lei de audiovisual é a captação, ou seja, pegar o seu projeto e sair de porta em porta dos patrocinadores, isso é mais complicado. Citando o exemplo de O Cheiro do Ralo, do Heitor Dhalia, um filme com roteiro do Marçal Aquino, baseado em um livro do Lourenço Mutarelli, filmado em São Paulo, baratíssimo e aprovado pelas leis, não conseguiu dinheiro. Quem ia querer investir a marca em um filme com este nome, mesmo com o Selton Mello, estrela do star system, no elenco? Patrocinar um filme brasileiro acaba sendo um investimento na própria marca da empresa e não na cultura, por isso ninguém quer queimar a marca em filme com este nome. A solução do Heitor foi filmar com dinheiro do próprio bolso e ele conseguiu, mas tem roteiros que não permitem fazer isso. Assim, todo mundo que trabalhou no filme era cotista e se desse lucro cada um ganharia o seu. Este é um exemplo de cinema feito com dinheiro “bom”, feito em cooperativa, mas nem todo filme pode ser feito assim. Isso é muito mais complicado do que ser aprovado pelas leis. Vira então a “era” do gerente de marketing decidindo qual cinema a gente vai ter, mas a cultura e a experimentação ficam relegadas. Como um filme pode ser experimental com o dinheiro da Natura? Essa é a empresa que prefere investir em filmes como O Mistério do Samba, sobre a história da Portela, não em filmes como Cleópatra. Isto é legítimo, afinal uma empresa quer fortalecer a sua marca. Para isso, surgem editais como o da Petrobras, para filmes de baixo orçamento, ou o edital de Paulínia, que acabou de aprovar oito ou nove roteiros para serem filmados ali, pois há um interesse da cidade de formar um pólo de cinema. Eu sou a favor de tudo. Empresas para investir em filmes como O Mistério do Samba e também outras como a Petrobras, com editais para dar dinheiro para filmes experimentais. E também acho que deveria ter um fundo, como na Europa, para incentivar quem é novo, pois os editais privilegiam produtores e diretores com uma cinematografia conhecida da comissão, salvo os roteiros sem nome. Na Europa é assim, se você fez um curta, ganha pontos, fez um roteiro, mais pontos, até acumular e ganhar o incentivo por mérito. E ter dinheiro “bom”, o que é raro no Brasil, ou seja, investidores colocando dinheiro a perder de vista ocorre somente se o filme for muito comercial e com chances de retorno financeiro. Mesmo assim, o produtor da Conspiração, Leo Monteiro de Barros, disse que foi difícil conseguir dinheiro para o Dois Filhos de Francisco. Ninguém ia imaginar isso. E este é o tipo que a gente deveria ter mais, filmes bons, bonitos e baratos para atrair público. Mas toleramos muito mais um filme ruim americano do que um filme médio brasileiro, a gente tem que sempre ser gênio, fazer obras-primas, todo mundo tem que ser um Glauber.

Lançamento

Eu trabalhava em uma agência que pensava esta última parte do cinema, do lançamento e da distribuição- que no Brasil, ainda é muito deficitária. Em 2001, era mais fraco ainda. Então eu pensava o que fazer com o filme, onde lançar, quem chamar para a platéia de pré-estréia. E depois, é feito o lançamento mesmo. Então, começa a divulgação, desde teste de produção, até plano de marketing e assessoria de imprensa. Eu trabalhava desde a finalização, até o filme cair na praça. Isso no Brasil ainda é muito deficitário. Agora que a gente está melhorando. Em 2001, peguei Cidade de Deus na primeira exibição do filme. Chamamos formadores de opinião para saber o que achavam, até cabine para imprensa e lançamento. Isso tudo dá uma outra visão, do que é o outro lado do cinema. Acho que quem faz cinema no Brasil, estudante de cinema, tem muito aquela visão: vamos fazer filmes. Aí o filme fica lá na gaveta, porque não tem ninguém que compre para distribuir. Se conseguir, não tem onde exibir. Se exibe, não tem quem assista. Porque um filme que não tem, pelo menos, o apelo da Globo Filmes na mídia é muito menor. Não tem nem como comparar o apelo de dois minutos na Rede Globo com o apelo de uma crítica no Estadão.

Distribuição

Pense assim. Murilo Salles acabou de filmar Nome Próprio, ganhou dinheiro do edital de BO [filmes de Baixo Orçamento] e começou a mostrar o filme para potenciais distribuidores, gente que vai comprar o filme e vender. Então, o diretor fecha antes com empresas grandes para investir na distribuição dos filmes. Se você tem a Warner, a Fox, a distribuição está assegurada, caso contrário, você tem que pessoalmente correr atrás disso. Outra opção é colocar em festivais, para ele aparecer e finalmente alguém ter o interesse em distribuir ou usar o dinheiro do prêmio para pagar assessoria de imprensa, de marketing, as cópias, cartaz, flyer, promoção, festa e viagem de pré-estréia. Se eu sou dono do Cinemark e pegar um filme como o do Júlio Bressane, não compro o filme. Não vale a pena, por que não vai me dar público. Outro caso é o do André Sturm, que é um dos donos do Belas Artes e da Pandora Filmes, do Jean-Thomas Bernardini, no Reserva Cultural, do Leon Cakoff e do Adhemar Oliveira, no Espaço Unibanco, que têm a vantagem de comprar um filme e exibir nas suas próprias salas. Os donos das salas podem fazer o que quiserem, deixam quanto quiserem em cartaz, mas se o distribuidor não é dono da sala, o filme fica sujeito à lotação da sala e aos interesses do exibidor. É uma questão de mercado mesmo, neste momento o filme vira um produto de comércio. Hoje em dia, acho que se conta cada vez menos com o dinheiro do cinema, isso só ocorre até ele ser conhecido, depois você acaba pagando ele na compra do DVD e locações homevideo, na televisão a cabo, aberta ou mershandising. Além disso, tem outro problema. Lançar um filme brasileiro em julho, por exemplo, é suicídio. Tem tantos filmes de férias que nem tem sala para colocar. Sempre quando estréia um Batman da vida, que passa em duas mil salas, sobra umas cinqüenta para filmes brasileiros. Também é uma questão de logística, é produto. Com a exibição digital talvez isso melhore, fique mais barato e não precisem ser feitos vários rolos de filme, isso encarece.

Pontos Fracos

Acho que roteiro e distribuição ainda são pontos fracos do nosso cinema. É uma questão de mercado. Se você não tem um trabalho de marketing para as pessoas saberem que um filme existe, ele não vai alcançar público. Às vezes, o filme fica pronto esperando ser lançado, fica na gaveta. Existe o distribuidor que compra este filme e oferece para as salas de exibição e o exibidor, que escolhe exibir ou não. Tem muitos filmes que ganham prêmios lá fora, festival de Brasília e ficam seis meses negociando para que alguém compre para distribuir. Por isso que temos editais de distribuição, por que custa distribuir um filme, fazer cópia, lançar o filme. Precisa de dinheiro, marketing e mídia para lançar um filme, não basta fazer.

Televisão

Eu acho que a televisão deveria se associar ao cinema para distribuir, passar os filmes. Eu sou como o Paulo Emílio Salles Gomes, o pior filme brasileiro é mais interessante do que o melhor filme estrangeiro, no sentido de que eles estão falando da gente, do país. Por exemplo, eu prefiro uma sala lotada para ver a Xuxa do que outra para ver Kung Fu Panda. É melhor até para o mercado interno, é produção nossa e é aí que a televisão entra. O errado é dar dinheiro de lei de incentivo para filmes que conseguem se bancar sozinhos, como os da Xuxa. Ela consegue dinheiro “bom”, então por que ficar dando dinheiro de lei de subsídio para ela?

O DOCTV é um programa de incentivo aos documentário para televisão, mas muitos filmes produzidos para ele viraram também documentários para cinema. Acidente, da produtora Teia, de Belo Horizonte, por exemplo, estava no DOCTV, foi editado para o formato do cinema e participou de vários festivais. Agora esse pessoal está mais conhecido e, neste ano, a produtora ganhou dinheiro para um novo um longa-metragem pelo fundo Hubert Bals, da Holanda. Neste sentido, os festivais são importantes para viabilizar coisas que não são comerciais e não teriam como conseguir dinheiro de outra forma.

Além disso, teremos aí uma janela da televisão digital que vamos precisar preencher. Temos que começar a fazer mais filmes para televisão, isso nos Estados Unidos e na Itália acontece muito. Assim como o DOCTV está para os documentário, temos que fazer isso com filmes de ficção também. Eu sou a favor dessa “pulverização” de dinheiro para quem está começando mesmo. Não dá para deixar o dinheiro concentrado apenas nas mãos de cinco oligarquias cinematográficas, caso contrário, a experimentação e a excelência vão parar onde? Não dá para ficar condenando diretores como o Júlio Bressane [por falta de apelo comercial, falta de público], pois é ele quem vai passar nos festivais como sendo cinema de ponta, de autor.

Outubro de 2008