Ponto de vista

Uma profissional e diversos olhares sobre o cinema do Brasil (Parte 1)

Entrevista com Flávia Guerra

Muito solícita desde os primeiros contatos por telefone, Flávia seria a primeira mulher que entrevistaríamos. Primeira e provavelmente única, tendo em vista a escassez destas no campo da crítica de cinema no Brasil. Não sabíamos o que esperar. Chegamos ao Estadão. Nomes e RG na portaria. Portas e mais portas. Um longo caminho até o elevador que dava acesso a uma enorme redação. Lá no fundo, havia uma moça morena, bem moça por sinal, ao telefone. Depois de andarmos por entre as várias editorias, fomos conduzidas por ela a uma sala. Na primeira pergunta já sentíamos que seria uma entrevista das boas.

Flávia Guerra se formou em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo (ECA-USP), em 2000. Começou a escrever sobre cultura um ano antes, no Estado de S. Paulo. A trajetória da jornalista inclui o trabalho com finalização e lançamento de filmes brasileiros no exterior. Além de cobrir cinema, moda e música e fazer críticas para o Estado de S. Paulo, é repórter da Rádio Eldorado. Este ano participou do documentário Marcha Pela Vida, uma co-produção entre Polônia e Estados Unidos, que conta a história de uma peregrinação que judeus de vários países do mundo fazem todos os anos de Varsóvia para campos de concentração da Polônia e depois para Israel. Flávia acabou de viajar para a Inglaterra, vai estudar direção de documentários na Universidade de Londres, durante um ano.

Depois de duas fitas gravadas, viramos fã daquela profissional multifacetada, perspicaz e inteligente. Saímos boquiabertas, ansiosas para transcrever àquela entrevista tão estimulante, em que Flávia fala, entre outras coisas, sobre a dificuldade de captar recursos, distribuir e exibir filmes no Brasil. Tanta riqueza de informações não poderia dar em outro resultado, que pode ser conferido aqui em duas partes.

Jornalismo Cultural

Eu acho que o jornalista de cinema, antes de ser jornalista, é cinéfilo. Se você não é apaixonado por cinema, não vai cobrir cinema, pois é uma área que exige uma formação. Em jornalismo de arte, as pessoas estão sempre, de alguma forma, lidando com a arte, fazendo crítica, escrevendo livros, roteiros. Hoje em dia, a gente vive a era chamada de cross media, ou da sinergia. Ou seja, não dá mais para você levar um jornal só pelo impresso, afinal ligar as áreas é mais interessante do que ficar restrito. O leitor de hoje em dia assiste televisão, está na internet, escuta rádio, roda um dvd, baixa uma música, fecha o jornal, pega uma revista. Ficar em uma área só hoje é muito difícil. Os novos críticos não ficam mais. Só a crítica pela crítica é um pouco estéril, neste sentido de diálogo. Quando você é também repórter e jornalista, fica mais humilde, aprende mais, sabe melhor do que está falando. É diferente você ser um jornalista de cinema que vai a um set, vê o trabalho de um roteirista e sabe o que está acontecendo na legislação, e ser um crítico, que vai só na cabine de manhã, assiste a um filme e diz o que achou. É como se eu cobrisse política só assistindo aos discursos do Lula. Acho que o crítico deve ser mais participativo, se inteirar sobre o fazer cinema do que ficar só no lançamento.

Caderno 2

O cinema tem uma posição mais forte no sentido de espaço. Não é porque é o Caderno 2, é porque o cinema é uma arte de massa e, por isso, está mais presente. Quantas exposições de peso você tem abrindo por semana? E quantos lançamentos de filmes há? Acabamos de sair de uma reunião de pauta agora, temos dez estréias esta sexta, enquanto a gente tem uma mostra na Oca abrindo e uma no Mam [Museu de Arte Moderna], que não é nacional. O filme tem este apelo, pode estrear em dez capitais ao mesmo tempo, já com exposição ou peça de teatro não tem isso. E o interesse por cinema é infinitamente maior, é uma arte de massa, então acho que consegue combinar entretenimento, business e arte.

A Crítica

O crítico no Brasil é um autodidata, não tem uma escola de crítica. Raras exceções fizeram um curso de crítica na Europa, a maioria se formou por leitura e prática. O problema da crítica de cinema no Brasil não é uma questão da leitura de crítica, mas é que tem muito pouco brasileiro que lê, principalmente sobre cultura. Existe mais revista de história do que de cinema neste país. Temos a Set, a Bravo!, a Revista de Cinema, e são todas oito ou oitenta, não existe um meio termo, como existe na França a Positive, a Cahiers du Cinéma e outras, ou nos Estados Unidos que tem a Vanity Fair, a Premiere, na Itália tem a Ciak. A gente está muito mal.

A crítica tem duas importâncias: guiar o público e dar um selo de qualidade para o filme, atestar que aquilo é bom. Ela é qualitativa e não quantitativa. Não é porque um filme teve cinco estrelinhas da Folha que ele vai levar público. A mídia da crítica é ínfima em um mercado como o Brasil. A crítica dá prestígio, mas não leva público. Para um filme de arte, acho que ela ainda faz diferença de público também. Falta um maior diálogo da crítica com o público. Hoje em dia, as pessoas não respondem, não mandam cartas, e-mails, não tem réplica de um diretor. A crítica fica um pouco distante, em um pedestal.

Cobertura de Cinema Internacional

Para a cobertura de cinema internacional, as distribuidoras do filme no Brasil convidam o jornalista, pagam passagem, hospedagem, comida, táxi, ele assiste ao filme e depois participa de uma coletiva. Ele volta e escreve. A única exceção ocorre nos grandes festivais nos quais, por exemplo, o Estadão paga o correspondente. Se você fica preso à agenda dos agentes de marketing do filme, qual a parte crítica que você terá do processo todo? Para ter o Batman na capa da Ilustrada, como foi ontem, vale a pena pagar o jornalista para ir até lá. Se você participa mais e sabe como funciona, vai saber que são todas iguais e vai ter uma postura mais crítica diante disso. O que a gente tem de grande imprensa que investe nisso hoje em dia? Quando muito, Globo, Folha e Estado, que tem uma postura mais crítica. Acho que jornalisticamente devemos ser muito críticos, é a era do marketing, das grandes corporações.

Cinema Brasileiro no Exterior

Antes de Cidade de Deus, o Brasil não era visto como um país que tem uma cinematografia. Ele tinha exemplos pontuais desde o Cinema Novo, tem um filme do Babenco, outro dos Barreto. De lá pra cá, a gente ganhou uma presença muito mais constante. Eu acho mais importante para a cinematografia de um país uma produção mais constante do que uma jóia rara a cada cinco anos. Neste sentido, o Brasil ganhou bastante terreno. Este ano mesmo, a gente teve Berlim, Cannes, com certeza vai ter algum filme agora em Veneza [em referência ao Festival de Veneza, que ocorreu entre os dias 27 de agosto e 06 de setembro. A entrevista foi feita no dia 8 de julho]. Já o festival de Locarno na Suíça, que é o terceiro mais importante da Europa e Rotterdam, vai dedicar uma sessão para a América Latina, especial ao Brasil. O festival de Roma que está na terceira edição, vai dedicar uma mostra só para o Brasil, que é o país homenageado deste ano. Há vários festivais de cinema brasileiro acontecendo pelo mundo. Em julho acontece o primeiro festival de cinema brasileiro na Polônia, tem o de Miami, que lota, o de Nova York, que vai acontecer em agosto. Tem também um em Israel, um no Canadá, tem na Espanha, o de Milão. As pessoas conhecem mais o cinema brasileiro hoje em dia. Na Polônia, o último filme que chegou foi Cidade de Deus, mas agora tem este festival. Na Itália, no mês passado estrearam na mesma semana Tropa de Elite e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias e na semana retrasada estreou Cidade Baixa. Parece pouca coisa, mas no sentido de mostrar que o país tem uma produção, a gente ganha terreno. Ao mesmo tempo, tinha o Blindness abrindo o festival de Cannes, este ano. Não é um filme brasileiro, mas o diretor é brasileiro. Tinha o Linha de Passe, que além de ser incrível, é totalmente brasileiro. Tinha o Matheus Nachtergaele, com A Festa da Menina Morta que é um filme brasileiríssimo na Un Certain Regard [mostra paralela do Festival de Cannes], além de curtas metragem.

O Programa Cinema do Brasil, que a FIESP [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] desenvolve com a Apex [Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos], tem estandes em todos os grandes festivais e faz várias ações para promover o cinema brasileiro. Todos os países têm seus estandes em festivais, o Brasil não tinha até três, quatro anos. Cada produtor brasileiro que ia, ia por ele mesmo. Ele não era um país. Hoje em dia não, se alguém quer conversar com o Barretão no Festival de Cannes, pode ir ao estande de cinema do Brasil. Parece uma coisa boba, mas isso faz toda a diferença, dá uma cara mais profissional.

Visibilidade da Produção Nacional

As produtoras chegam com este projeto em Barcelona, por exemplo. O produtor de Barcelona lembra que o Brasil ganhou o festival de Berlim, Cidade de Deus esteve no Oscar, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias também estava. Isso forma um imaginário. A gente profissionalizou, temos produtores mais jovens também. Cada curta-metragem brasileiro que você coloca num festival faz diferença. Quando você tem um cinema que é mais forte em festivais, é mais fácil para fechar acordos para co-produções internacionais. E aí se viabilizam os filmes. Isso tem acontecido bastante. O fato do Brasil ter ganhado um festival como o de Berlim chama atenção para o nosso cinema. Quando a gente chega com um documentário brasileiro para apresentar para produtores alemães, por exemplo, a memória de que o cinema brasileiro está fazendo coisas interessantes está muito mais fresca. Você marca uma presença. Estômago é o primeiro filme brasileiro feito em co-produção com a Itália desde 1975. Quando este acordo foi firmado, ninguém sabia usar. É assim que a gente ganha, tirando os filmes que já tem milhões da Globo Filmes, da Diler & Associados ou filmes do Babenco, o filme brasileiro de médio porte tem conseguido muito mais com a co-produção.

Cinema Brasileiro na Visão dos Estrangeiros

Acho que as pessoas querem entender mais o Brasil, estão mais abertas ao cinema, apesar de eu achar que ainda fica um pouco aquela noção de terceiro mundo ou que todos querem mais do mesmo, mais Cidade de Deus. Em Cannes, por exemplo, foi muito bem recebido o filme do Waltinho [Walter Salles], que é sobre uma família normal de subúrbio vivendo uma vida, sem nada de violência, sangue, terceiro mundo no sentido folclórico. Acho que as pessoas estão acostumando a ver o cinema brasileiro mais amplo que não seja só o Cinema Novo ou filme-favela.

Estéticas e Temáticas

Não dá para se falar de ciclos, mas nós temos no Nordeste estes “árido movies”, que são os filmes bons, baratos e criativos, que falam da realidade urbana também, não só da rural. Os meninos de Pernambuco conseguiram fazer muita coisa neste sentido, como o Árido Movie, O Céu de Suely, os filmes do Lírio Ferreira, do Paulo Caldas e o Cidade Baixa- apesar de não ser pernambucano, e sim baiano- todos devem ser valorizados, pois fazem uma “estética do cangaço” renovada. Tem algo ali de Cinema Novo, mas não é Glauber Rocha, estão um passo à frente, ou seja, fecham um pouco mais o roteiro. Tem também aquela linha “favela-urbana”, com Cidade de Deus, Tropa de Elite, que falam do submundo. Daqui a pouco, lançam o Broder!, do Jeferson De, que se passa no Capão Redondo e conta a história de pessoas comuns, não de polícia e bandido. O Walter Salles também entra neste tipo de filme sobre gente comum, assim como a Tata Amaral, com o Antônia, o Beto Brant, com O Invasor. Por fim, tem esses filmes populares, do padre Marcelo, Xuxa, Didi.

Setembro de 2008