Ensaios

Relações de poder no fazer cinematográfico

O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramento
Santiago (2007), João Moreira Salles

Poucos foram os filmes brasileiros produzidos na última década que se debruçaram sobre as relações de poder entre aqueles que têm acesso aos meios de produção de filmes e os personagens e atores sociais retratados. Duas iniciativas nesta direção chamam atenção. O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003) e Santiago (2007) refletem, cada um à sua maneira, sobre estas relações de poder e há, em ambos, uma postura dos diretores de pensarem sobre sua condição, mesmo que inconscientemente, de classe informada e instrumentalizada, detentora dos meios de produção, ou pelo menos, com fácil acesso a eles.

Há 16 anos, João Moreira Salles decidiu fazer um filme sobre o mordomo da sua família. Na época, fez as filmagens e iniciou a edição com o objetivo de fazer uma biografia. Desistiu e o projeto foi retomado com uma nova proposta em 2005. Lançado em 2007, Santiago fala sobre aquele que deu origem ao título e, mais do que isso, é um filme sobre o passado e o presente, sobre a memória e o tempo e, finalmente, sobre a relação entre João Moreira Salles e Santiago. Os anos que separaram a filmagem da edição serviram como depuração da idéia inicial do documentário. Para concluir o filme o diretor precisou de um certo distanciamento, de alguns anos de vivência, experiência profissional e amadurecimento, para compreender a sua relação como diretor com seu "personagem", para finalmente conseguir expressá-la com uma nova montagem.

Santiago Bardariotti Merlo foi um homem simples, começou a vida na Argentina e se doou, por muitos anos, para a família Salles, trabalhando como mordomo. Durante a vida, foi um dos vários seres invisíveis da nossa sociedade. Longe da família e de amigos, viveu na companhia de um passado que não lhe pertencia. Catalogou mais de mil anos de biografias de aristocratas, reis e artistas famosos, em inesgotáveis páginas copiadas de próprio punho. Esta foi, simbolicamente, sua forma de entrar para a história e de fazer parte da elite do mundo. Conversava com seus “amigos” nobres, garantia que tomassem ar sempre, dedicando a eles o mesmo cuidado que tinha com os irmãos João, Walter e Pedro. Há também a história de uma Casa da Gávea solitária e vazia, cujos únicos sopros de vida eram rastros de um passado coberto com panos brancos. O longa serve também como uma volta nostálgica de João à sua infância. O diretor trata de sua memória daquele passado, fragmentada e incompleta, como a filmagem caseira inserida no filme, sem começo, nem fim, da família Salles se divertindo na piscina da casa em que João viveu durante 20 anos.

Em 1996, outro diretor estava apenas se formando em cinema na ECA-USP. Naquela época, Paulo Sacramento queria fazer um filme sobre o sistema carcerário brasileiro. Antes de concluir o projeto de O Prisioneiro da Grade de Ferro, ele trabalhou como produtor e montador de vários filmes e dirigiu curtas-metragens, enquanto fazia longas pesquisas e diversas filmagens sobre este tema. Sacramento ofereceu aos detentos um meio de participarem ativamente da documentação. Ele se inspirou no documentário Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino, sobre o lavador de carros Deutrudes Carlos da Rocha, primeiro filme brasileiro a utilizar imagens produzidas pelo próprio indivíduo documentado. Raulino havia sido professor de fotografia de Sacramento e foi convidado para participar deste projeto.

Para o longa-metragem, o produtor Gustavo Steinberg sugeriu que a equipe oferecesse um curso não profissionalizante de documentário aos detentos, prevendo que o trabalho deles poderia resultar em um filme. O curso durou cerca de um mês, com aulas práticas e teóricas. Nos outros seis meses, os prisioneiros já faziam roteiros, entrevistas e estavam capacitados para operar as câmeras. A utilização de mediadores que fazem a transição entre dois universos é recorrente nos filmes brasileiros contemporâneos. Personagens como Buscapé, de Cidade de Deus (2002), e o médico inspirado em Dráuzio Varella, de Carandiru (2003) são narradores das histórias, facilitam a entrada do espectador de classe média nos ambientes aos quais não pertence, percebem a situação de fora e, por isso, são capazes de enxergá-la com mais distanciamento. Desta forma, Sacramento permite que os personagens de seu filme sejam também co-autores, aspecto que é destacado no título do longa e retomado na introdução por um rapper que diz: “Aí rapaziada, esse filme começa agora. Esse é o Carandiru de verdade, esse é nosso auto-retrato.”

Em O Prisioneiro da Grade de Ferro a opção de entregar as câmeras aos detentos, o uso de poucos comentários em off e de quase nenhuma trilha sonora (nos raros momentos em que este recurso é utilizado, é sempre com a mesma melancólica gravação de Ave Maria), caracterizam-se como tentativas de reprodução direta daquela realidade. A supressão quase integral do processo de produção do documentário na montagem também contribui para esta tentativa de fazer um retrato objetivo do real. O efeito disso é que, em geral, não se diferencia o material produzido pela equipe profissional daquele feito pelos alunos. O diretor afirma em entrevistas, por exemplo, que era um desejo dos prisioneiros mostrarem o exame que qualifica o regime de horas que devem ser cumpridas dentro ou fora da prisão. Na edição da entrevista, porém, aparecem apenas as perguntas da comissão julgadora, nunca as respostas do detento. Sabemos apenas que seu pedido de regime semi-aberto foi indeferido. Neste momento, assim como no filme em geral, a voz dos detentos perdeu espaço, pois eles não participaram da montagem, momento determinante para a produção de significados. Cria-se uma falsa neutralidade, o filme não retrata com clareza nenhum ponto de vista: nem a visão dos presidiários, nem a do diretor. O subtítulo “Auto-retratos” torna-se, então, questionável.

O resultado é uma estrutura descritiva e didática, que revela o universo penitenciário por pavilhões. São conhecidos o dia-a-dia, o modelo dos uniformes, as formas de alimentação e lazer. Cada um trabalha como pode, com próteses dentárias, vendendo desenhos ou se prostituindo; e se diverte com o que consegue, jogando futebol, tocando violão, participando de apostas e mesas de baralho. Assim, é possível observar que dentro dos muros da prisão se esconde um microcosmo social com valores morais e leis próprias, no qual se reproduzem preconceitos e segregações. Isso se torna evidente, por exemplo, na distribuição geográfica dos pavilhões. No sete, por exemplo, há muitos seguidores da Assembléia de Deus, separados dos homossexuais e dos cultos de Candomblé, religião em que esta orientação sexual não é reprimida ou considerada tabu. Outro exemplo é o pavilhão cinco, famoso pelas práticas esportivas, em que foi adaptada uma academia, com esteiras ergométricas improvisadas, enquanto latões de tinta e barras de metal servem como pesos.

A inserção dos prisioneiros apenas durante o processo de produção das imagens gera outras limitações. Um exemplo é a palestra inicial que apresenta a cartilha de direitos e deveres do "reeducando" e informa aos novatos, e a nós espectadores, sobre a vigilância 24 horas por dia. Não há aqui uma iniciativa de discutir a violação dos direitos humanos, nem da função que as instituições de controle assumem em nossa sociedade. O caráter das prisões - como um instrumento punitivo, isolando e privando os criminosos dos seus direitos básicos - é naturalizado. A hipocrisia do significado da apostila e da terminologia “reeducando” para designar os detentos não é questionada. Assim como se ignoram a qualidade das refeições, o saneamento básico e as condições de lotação das celas. Por outro lado, após reconstruir o Complexo Penitenciário por meio de imagens no início do filme, o documentário termina com a inauguração de um novo presídio, de forma a denunciar que a implosão do Carandiru não modificou a situação carcerária. Na seqüência da inauguração, há um discurso do então governador de São Paulo se orgulhando da obra, indicando que a mentalidade punitiva se mantêm. Este é o único momento em que o diretor explicita seu ponto de vista e dá ao documentário uma postura crítica.

No filme de Sacramento, a montagem diminuiu a força que a voz dos detentos poderia adquirir com a proposta inicial e, em Santiago, foi a edição que fez emergir a postura crítica do diretor. Na primeira tentativa de fazer seu filme João tinha a ilusão de fazer um retrato fiel de seu personagem. Por isso, regravava cenas e dirigia Santiago de forma autoritária como se fosse um ator de ficção, acreditando assim fazer uma mimesis do real. Porém, ao editar o filme, o documentário que antes deveria ser uma biografia sobre o mordomo, se tornou uma reflexão sobre esta relação de poder e sobre a impossibilidade do retrato objetivo. A montagem privilegiou a interação entre diretor e entrevistado, fazendo emergir o processo de produção, da mesma forma que a narração de João Moreira Salles em off, comentando as gravações e edições do passado. Apesar de representar a voz do diretor, a narração em primeira pessoa é de seu irmão Fernando. A imagem do diretor não aparece em nenhum momento, com exceção de uma silhueta encoberta pelo corpo de Santiago. Esta sutil cena é uma alegoria do conteúdo do filme: o diretor por trás de um objeto documental.

João se coloca como personagem do documentário, mesmo não aparecendo nas cenas e, logo no início, deixa claro que poderia ter feito muitos filmes com o material bruto, porém o que se observa no longa é sua opção por privilegiar na edição a relação de poder existente entre ele - filho do patrão e documentarista - e o mordomo/personagem. Durante as entrevistas com o personagem, o diretor demonstrava uma postura autoritária, direcionando as ações e falas de Santiago, que eram cumpridas de forma submissa, reproduzindo a hierarquia existente entre o “filho do patrão” e o mordomo. Em uma das seqüências, Santiago se abre, para contar sobre a sua intimidade e, neste momento de maior fragilidade, a sombra de João se impõe e dispensa a confissão. Na estética, a mesma autoridade estava presente nos enquadramentos sufocantes. Santiago estava sempre encolhido, confundindo-se com puxadores das portas daquela cozinha, que adquiriam dimensões monumentais. Era esmagado pelos batentes, armários, colheres e panelas. São tantos os objetos colocados em cena que se gera uma distância física entre o cineasta e o “outro”.

Os trabalhos da carreira de João, em geral, perpassam a questão da identidade, tanto nas séries para televisão, quanto nos documentários que abordam a realidade sócio-econômica do país. Sem perder de vista este tema, fica aparente um interesse em tratar trajetórias individuais, o que pode ser observado em Nelson Freire (2002) e Entreatos (2004). Durante sua carreira, coordenou projetos, escreveu roteiros e produziu vários filmes, incluindo os de Eduardo Coutinho. Em Santiago, seu filme mais pessoal, esta tendência continua, privilegiando na montagem o relacionamento entre ele e o personagem, reproduzindo as lembranças de João por meio da vida e memória de Santiago.

Ambos os filmes enriquecem a produção nacional por assumirem uma postura consciente, discutindo a desigualdade social do país reproduzida também no fazer cinematográfico. A proposta de O Prisioneiro da Grade de Ferro é uma tentativa de quebrar com o atual paradigma, no qual a classe média é a única capacitada a problematizar questões sociais, em especial do "outro", para isso recorre-se a quem vive esta realidade. Esta atitude, apesar de notável, não reflete de fato a visão dos presidiários sobre a vida no Carandiru. Em Santiago, a diferença de classe também está impregnada no filme, por meio da dupla relação de poder que se estabelece entre João Moreira Salles e Santiago que é enfatizada pela montagem.

Por Camila Fink


Agosto de 2008