Ensaios

Embates entre a moral e o desejo na sociedade brasileira

Lavoura Arcaica (2001), Luiz Fernando Carvalho
Madame Satã (2002), Karim Aïnouz

Em uma cinematografia, há filmes que se destacam. Projetos pautados por questões estéticas que propõem diferentes formas de abordagem, sem concessões ao mercado. Filmes que refletem na tela as aspirações de um diretor. Madame Satã e Lavoura Arcaica são dois exemplos deste tipo de proposta.

Lavoura Arcaica não é para todo o tipo de espectador, porém uma obra prima para os que gostam de filmes audaciosos. Lento, extenso, de tema espinhoso, com diálogos literários, o longa conta a história de André, interpretado brilhantemente por Selton Mello, filho de uma família de imigrantes libaneses, que nutre uma paixão incestuosa pela irmã Ana, papel de Simone Spoladore. O centro da trama é a família e dela partem os diversos conflitos que terminam em tragédia. Os valores patriarcais rígidos baseados no trabalho, negação das paixões, obediência, religiosidade e amor familiar se tornam, em determinado momento, impraticáveis para este jovem tomado de desejo pela irmã. Diante desse impasse, André decide fugir de casa e se muda para uma pensão.

Um dos pontos altos do filme são as explosões físicas e verbais de André, seja nas cenas em que ele despeja no irmão mais velho, Pedro (Leonardo Medeiros), toda a verdade sobre sua fuga ou quando ele se esfrega no chão da fazenda tomado por um desejo sexual quase incontrolável. Além da ousada cena inicial, em que ele se masturba ao som de uma locomotiva no quarto de pensão em que mora.

A narrativa de Madame Satã também é toda marcada por explosões do protagonista, interpretado pelo impecável Lázaro Ramos. O pobre, negro, homossexual e analfabeto João Francisco dos Santos, é um excluído absoluto que se rebela contra sua condição social usando a única coisa que tem - seu corpo. João luta para se afirmar como homossexual e performer na preconceituosa e conservadora sociedade do Rio de Janeiro dos anos 30 e 40. Assim como Luiz Fernando Carvalho, Karim Aïnouz marca com seu primeiro filme, presença na produção brasileira contemporânea.

Karim poderia ter seguido o caminho tradicional e enfadonho das cinebiografias, retratando a infância, adolescência, consagração e morte de João Francisco dos Santos. Mas preferiu, muito sabiamente, se focar no momento anterior ao sucesso do personagem, mostrando as humilhações, preconceitos e dificuldades que João enfrentou até se transformar no lendário travesti. O filme se passa na Lapa, famoso bairro boêmio, ponto de jogo e prostituição, freqüentado por Noel Rosa, Ismael Silva, Chico Alves, Heitor dos Prazeres, entre outros célebres artistas, que são reverenciados pela excelente trilha sonora com canções como “Se Você Jurar” (Francisco Alves, Ismael Silva e Nilton Bastos), “Mulato Bamba” (Noel Rosa), entre outras.

A produção se debruça sobre personagens amorais – a prostituta Laurita (Marcélia Cartaxo), o garoto de programa e homossexual Tabu (Flávio Bauraqui), além de Madame Satã – sem os glamourizar ou esteriotipar. Laurita sofre agressões de clientes, Tabu e Madame cometem furtos, os três vivem em uma casa muito precária, mas têm sonhos, momentos de lazer na praia e cuidam da filha de Laurita. São personagens complexos que ganham profundidade com a ajuda do competente elenco. Laurita, sua filha, Tabu e Madame formam uma família nada convencional em contraposição à tradicionalíssima de Lavoura Arcaica. É no convívio familiar que o protagonista se revela mais doce e desarmado, principalmente nas cenas em que cuida com carinho da pequena criança, agindo como um pai. Porém, estes momentos de doçura viram acessos de fúria em instantes, quando o personagem se sente incomodado com risadas desmedidas ou pela falta de atenção em sua apresentação para os “familiares”. Ele está sempre pronto para usar a violência em resposta a qualquer tentativa de desmoralização ou opressão que sofra.

Os filmes têm em comum o destaque que conferem ao corpo dos personagens, o que se reflete na forma de registrá-lo. Em várias cenas de Madame Satã existem espelhos, seja para o personagem olhar os hematomas depois de uma briga, para se maquiar ou ensaiar para suas performances. Uma das mais emblemáticas acontece no camarim de Vitória dos Anjos (Renata Sorrah), em que a dançarina ofende o travesti ao vê-lo vestindo uma de suas roupas de show. A felicidade do personagem, que vive um momento mágico com aquela fantasia, subitamente se transforma em raiva, a ponto dele ameaçar Vitória com um canivete na frente de um espelho. Neste momento, a figura de João é refletida várias vezes, em uma metáfora que simboliza suas diversas facetas.

O personagem se impõe naquela preconceituosa sociedade por meio do corpo, que funciona como arma nos golpes de capoeira em que ele se defende nas brigas. O corpo é também sua forma de obtenção de prazer, o que se vê na intensa e corajosa cena de sexo homossexual entre João e Renatinho (Felippe Marques). Além disso, é graças ao corpo que ele alcança seu maior desejo: a visibilidade como performer. No segundo longa de Karim Aïnouz, O Céu de Suely (2006), este também é um elemento central. A protagonista Hermila (Hermila Guedes) ao rifar seu corpo para sair da cidade do interior do Ceará onde mora, transforma-o, ao mesmo tempo, em mercadoria e forma de libertação.

Nas duas cenas em que João Francisco dos Santos se apresenta no bar Danúbio Azul, seu corpo adquire expressão máxima, simbolizando a consagração do personagem. Como o próprio diz antes do show: “Nasci para este dia, para receber o aplauso do meu público”. Nas performances, transmite-se a idéia de que Madame Satã não consegue ser apreendido em sua totalidade pela câmera, pois ele freqüentemente extrapola os limites do quadro por causa dos enquadramentos fechados. Intercalam-se imagens nítidas e desfocadas de primeiríssimos planos da boca vermelha e olhos pintados de Satã, planos de detalhe de seus colares, brincos e partes de sua roupa. O reconhecimento do personagem é intensificado, nas cenas finais do filme, que mostram imagens de João vestindo uma fantasia de carnaval, acompanhadas por legendas que informam que ele havia ganho, em 1942, o concurso do bloco Caçadores de Viados com a fantasia Madame Satã. O texto diz também que este foi o primeiro de vários outros carnavais que ele ganhou, tornando-se, com o tempo, uma figura folclórica da cidade.

Se, em Madame Satã, Karim Aïnouz reconstrói o caminho que o marginalizado homossexual trilhou para se tornar o mito, ou seja, seu esforço para se impor socialmente, em Lavoura Arcaica, por sua vez, o embate se dá no âmbito privado. Porém, o conflito de André com a família impede que ele se desenvolva socialmente, pois, apesar de ter fugido de casa, não consegue se desvencilhar do passado. Trancafiado naquele quarto de pensão, o personagem não cita, em nenhum momento, o fato de trabalhar ou ter alguma atividade, a única coisa a que ele se refere são suas visitas ao prostíbulo. André é refém de sua obsessão pela irmã.

Por meio de flashbacks, o filme contrapõe a infância e a fase adulta do personagem. Quando criança, André mostra-se muito feliz, seja em sua amorosa relação com a mãe, no contato com a natureza - que é evocado na bela passagem em que ele cobre o corpo com folhas e esfrega o pé na terra - e também pela religiosidade. A cena em que o menino André se transporta de seu quarto para a igreja é uma das mais belas e poéticas do longa. Nela, a sombra do personagem de braços abertos se eleva na parede do quarto, há um corte e, em seguida, seus pés tocam suavemente o chão da entrada da igreja, simbolizando possivelmente sua elevação espiritual. A paz e alegria dessas imagens infantis dão lugar a cenas pesadas e freqüentemente escuras que representam o sofrimento e desilusão do personagem na fase adulta.

A descoberta da sexualidade e, logo depois, a paixão incestuosa pela irmã fazem com que o personagem se torne vítima de seu desejo. Neste momento, o pai passa a simbolizar a lei e, por isso, o impedimento da relação entre os filhos. E, assim como em Madame Satã, a questão do corpo e do desejo adquire papel central. Como na cena em que André faz um monólogo na capela, enquanto sua irmã ajoelhada reza e chora por ter consciência da impossibilidade daquela paixão. Em um gesto de subversão aos valores da família e, portanto, da religião, André tira a camisa e, possuído pelo desejo, se masturba na igreja.

A mesma carga de erotismo pode ser encontrada na passagem em que Ana dança na festa que comemora o retorno de André para a casa. Esta cena contrapõe-se à primeira dança da personagem que coincide com o dia da fuga do irmão. A graça, felicidade e sensualidade de seus movimentos transformam-se em um erotismo diabólico. Esta cena provoca estranhamento nos outros membros da família e desencadeia a tragédia.

Ambas as histórias abordam a moral como fator repressor da livre expressão da sexualidade e os valores sociais atuando contra o desejo. Em Madame Satã, o personagem consegue ir contra essas forças e alcança seu objetivo. Isso fica evidente na comparação entre a primeira e uma das últimas cenas do longa que mostram o rosto do protagonista todo machucado após ser preso. Na primeira, a voz off de um representante da lei, descreve o criminoso João Francisco dos Santos como indivíduo dado ao vício da embriaguez, pederasta passivo, de pouca inteligência, instrução rudimentar, desordeiro, propenso ao crime, sem religião, que adota atitudes femininas, entre outras afirmações. Esta fala oficial que, na última cena, descreve a sentença do personagem, é sobreposta pela de Madame Satã que subverte aquele momento com a história de uma de suas personagens: “Vivia presa há 10 anos em um castelo de uma ilha das Arábias, uma princesa de nome Jamacy.(...)Até que em um dia de Carnaval, um cavaleiro em seu camelo libertou a princesa”. Ao passo que, no final de Lavoura Arcaica, com a morte de Ana, o patriarcalismo se impõe e decreta o fim daquela contravenção.

Por Cyntia Calhado


Setembro de 2008