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Os anos 90 e o modelo de incentivo cultural pós-Embrafilme

“(...) indústrias culturais não podem nem devem estar sujeitas às mesmas regras comerciais aplicadas aos demais produtos industrializados, porque agregam valores que não podem ser medidos apenas pelos preços de compra e venda. A comercialização dos produtos culturais, sejam nacionais ou estrangeiros, não pode estar atrelada exclusivamente aos aspectos econômicos, às leis do mercado, mas sim e fundamentalmente ao respeito à liberdade de circulação da cultura. Este caráter de exceção das indústrias culturais é sustentado pela necessidade estratégica, em um mundo globalizado, de mantermos a identidade cultural brasileira, de mantermos a nossa personalidade diante de nós mesmos e diante do mundo.” NELSON PEREIRA DOS SANTOS e ORLANDO SENNA, “Declaração do Canecão”. (15) A Declaração do Canecão foi um documento lido por Nelson Pereira dos Santos para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro encontro com a classe artística, ocorrido em 19 de setembro de 2002 no Canecão, cervejaria da cidade do Rio de Janeiro. A declaração sintetizava os principais pontos que a classe cinematográfica reivindicava como política para o setor cinematográfico e audiovisual.

A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A) foi criada pela Ditadura Militar, em 1969, como órgão de cooperação do Instituto Nacional de Cinema (INC) com objetivo de distribuir e promover filmes nacionais no exterior. Em 1975, a empresa sofreu um redirecionamento, tornando-se mais ágil para a disputa no mercado cinematográfico, começando a produzir e distribuir filmes brasileiros. Durante os anos seguintes seu o sucesso foi expressivo, tendo conquistado cerca de 40% do mercado, incomodando as companhias norte-americanas a ponto delas recorrerem a pressões diplomáticas a fim de pressionar o governo brasileiro a abrandar o perfil protecionista da política cinematográfica adotada.

Com um discurso nacionalista – de conquista de mercado para o filme nacional -, os militares conseguiram a adesão de cineastas e produtores. A Embrafilme foi comandada pelo cineasta Roberto Farias, entre 1975 a 1978 e por Carlos Augusto Calil – indicado por profissionais do campo cinematográfico – entre 1985 a 1986. Muito próxima dos cineastas, a empresa produzia filmes comerciais e autorais, respeitando muitas vezes a legitimidade de alguns diretores e produtores e não o fortalecimento da indústria cinematográfica como um todo.

A crise econômica dos anos 80 e a incapacidade do Estado em ampliar os investimentos na Embrafilme foram, aos poucos, tornando a empresa incapaz de competir e regular o mercado cinematográfico. Além disso, setores da sociedade civil estavam incomodados com a interferência do Estado na economia e a imprensa, influenciada pela ideologia neoliberal, criticava as ações do governo na cultura, considerando-as protecionistas.

Uma nova reforma foi adotada em 1987, procurando dar agilidade a empresa, separando as funções comerciais e culturais, mas o resultado foi pouco expressivo. O corporativismo presente entre cineastas e produtores – que dificultava a adoção de uma política de produção mais independente –, o desinteresse do Estado em formular uma política cultural consistente e a forte crise econômica dos anos oitenta foram enfraquecendo a Embrafilme. Até que em 1990, o então presidente Fernando Collor de Mello, decretou o fim da empresa, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da Fundação do Cinema Brasileiro, em uma atitude que simbolizou o encerramento de um ciclo da história cinematográfica brasileira. A partir deste momento, o cinema perdeu seu principal agente financiador, distribuidor e regulamentador, além de ficar sem nenhum mecanismo de proteção frente ao cinema estrangeiro, tendo que competir em um mercado dominado pelo filme norte-americano, ao qual o público viu-se cada vez mais acostumado. O cinema brasileiro passou a ser considerado uma mercadoria como qualquer outra, de acordo com a visão neoliberal vigente no período.

Um dos principais efeitos do desmonte da estrutura institucional do cinema brasileiro, em 1990, foi a paralisação quase total da produção de filmes nacionais de longa-metragem, pela inexistência de mecanismos oficiais de fomento e financiamento aos produtores e realizadores. Para ter dimensão do que significou esta medida governamental, basta comparar a produção dos anos 70, de 100 filmes por ano, chegando a alcançar 35% do mercado interno da década seguinte. Já em 1992, a produção foi de apenas 2 filmes (16) FRANÇA, Jussara. Precisamos ter um cinema nacional? A retomada do cinema brasileiro. São Paulo: PUC-SP, 2005. pg. 80..

O longa Terra Estrangeira de Walter Salles e Daniela Thomas tematiza este período histórico brasileiro. Lançado em 1995, o filme retrata o que significou aquele governo e principalmente o Plano Collor para a sociedade brasileira: um momento de descrença em relação ao futuro do país e de falta de projetos coletivos. Esta situação se refletiu no campo cinematográfico, em que a viabilização de um filme dependia de iniciativas individuais e o projeto de um cinema que refletisse a cultura brasileira e tentasse uma identificação popular foi bruscamente rompido.

A criação da Lei Rouanet, em 1991, e a Lei do Audiovisual, em 1993, foram instrumentos muito relevantes para o restabelecimento da atividade cinematográfica brasileira e, de certa forma, serviram como uma nova esperança para os cineastas. Por meio delas, o governo estabeleceu medidas de incentivos fiscais às pessoas físicas e jurídicas para atrair o investimento de empresas nacionais e internacionais para as atividades culturais.

Em 1995, chega às salas de cinema, um filme brasileiro produzido com recursos independentes que chama atenção do público e da crítica. Carlota Joaquina – A Princesa do Brasil, de Carla Camurati, torna-se o marco de um período do cinema denominado pela imprensa como “retomada”, vinculado as leis de incentivo a cultura, revelando uma aproximação entre produtores de cinema e empresariado nacional. A comédia sobre a trajetória de Carlota e a vinda da Família Real ao Brasil foi realizada com apenas 500 mil reais e mais 100 mil em permutas. Segundo a diretora, fazer Carlota Joaquina foi uma aventura que daria um filme (17) DIEGUES, Carlos; FONSECA, Rodrigo; MERTEN, Luiz Carlos. Cinco Mais Cinco - Os Maiores Filmes Brasileiros em Bilheteria e Crítica. Rio de Janeiro: Legere Editora Ltda., 2007. pg. 262.. Durante um ano e meio ela e parte da equipe viajaram pelo Brasil para distribuir o filme. O resultado deste esforço pessoal de produção e distribuição foi recompensado, Carlota alcançou 1.280.000 espectadores com 33 cópias no mercado, durante os 11 meses em que esteve em cartaz. O longa se transformou no primeiro filme nacional, realizado após o fim da Embrafilme, a quebrar a barreira do milhão e, mais do que isso, com Carlota o debate sobre o cinema nacional volta à tona.

Depois de Carlota, outros filmes alcançaram sucesso semelhante, em especial as produções de Renato Aragão e Xuxa, que levaram o público da televisão para o cinema. A nova fase teve títulos que não obtiveram tanto êxito de bilheteria, mas trouxeram contribuições artísticas importantes, como é o caso dos filmes Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. e Um céu de estrelas, de Tata Amaral. A produção saiu do estado crítico que se encontrava, cresceu e se estabilizou em torno de 20 a 30 títulos por ano (18) ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. pg. 27.. Entre 1995 e 2002, o país produziu 200 longas, 60 novos diretores surgiram e o público de filmes brasileiros saltou de menos de 400 mil espectadores, de 1990 a 1994, para 25 milhões, entre 1995 e 2000 (19) GO então titular da Secretaria do Audiovisual, José Álvaro Moisés, cita dados que comprovam esta retomada do cinema nacional em artigo à Folha de S. Paulo publicado em 24 de maio de 2002..

A atual política cinematográfica do governo se baseia em dois órgãos complementares ligados ao Ministério da Cultura: a Secretaria do Audiovisual e Agência Nacional do Cinema (Ancine). Criada em 2001 durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a Ancine se estabeleceu a partir de uma demanda do setor, que se organizou e desenvolveu a proposta da agência durante o Congresso Brasileiro de Cinema realizado em Porto Alegre, em 2000, e no Rio de Janeiro, no ano seguinte. A idéia inicial era que esta agência fosse capaz de regular todo o setor do audiovisual, seguindo o modelo de outros órgãos reguladores do mercado. Porém, pouco antes do lançamento da medida provisória de criação da Ancine, a TV foi excluída e a agência voltou-se exclusivamente para o cinema.

Apesar dos avanços propiciados pelas leis de incentivo que geraram um sentimento de otimismo em relação à cinematografia nacional, alguns críticos, diretores e estudiosos do cinema já observavam as limitações deste novo período. Uma das críticas feitas às leis de incentivo é o fato de deixarem na mão dos diretores de marketing das empresas o poder de decidir o que deve ou não ser produzido no país, pois são eles que escolhem o produto cultural ao qual a marca da empresa deve ser associada, privilegiando certas produções em detrimento de outras. Segundo cineastas e produtores, este procedimento é uma censura velada a determinados temas. A produtora Sara Silveira, em entrevista ao crítico da Folha de S. Paulo, José Geraldo Couto, dá como exemplo a dificuldade de captar recursos para Madame Satã, de Karin Ainouz, “história de um marginal, drogado e homossexual” (20) COUTO, José Geraldo. Volume de novas produções sinaliza falsa prosperidade. Folha de S. Paulo, 18 de março de 1999..

É importante ressaltar que a Lei do Audiovisual e a Lei Rouanet não são as únicas formas de obtenção de financiamento para um longa-metragem. Existem concursos de âmbito federal, estadual e municipal que são formas alternativas de conseguir recursos e beneficiaram, neste período, muitos diretores com propostas temáticas ou de linguagem dissonantes.

Outra crítica que se faz sobre a atual política cinematográfica brasileira é que ela concentra esforços na produção, enquanto a comercialização e distribuição dos filmes continuam sendo monopolizados pelas companhias norte-americanas. Além disso, por pressões das emissoras, a legislação não estabeleceu uma relação entre a televisão e o cinema. Outro agravante foi o fechamento dos cinemas populares e o aumento do preço dos ingressos. Esses fatores fizeram com que o filme brasileiro não atingisse seu objetivo principal: o público. “Por conta da Lei do Audiovisual, os filmes continuam a ser produzidos, mesmo que ninguém os veja. Com orçamentos inflacionados – não raro ultrapassando os R$ 4 milhões – e bilheterias magras, o cinema brasileiro hoje se configura como uma indústria fictícia.”, afirma José Geraldo Couto (21) COUTO, José Geraldo. A indústria fictícia de cinema. Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1998. .

O crítico, Inácio Araújo, afirma que enquanto o cinema não tiver uma relação de cooperação com a televisão e o processo de exibição não se desvincular das grandes companhias americanas, o cinema no Brasil continuará entrando pela porta de serviço, tendo o tempo todo que provar que é bonitinho e educado. “As produções continuarão custando R$ 2 milhões a R$ 5 milhões, ou mais, e a ser vistas por 100 ou 200 mil espectadores, um despautério econômico, e a longo prazo, um descalabro estético”. Segundo ele, se o cinema nacional não encontrar espaço em seu próprio mercado, regredir ao zero é questão de tempo. “A relação do público no Brasil com os filmes brasileiros ainda é incerta. Nos anos 80, chegamos a crer que imagens cinematográficas fossem dispensáveis. Quando elas sumiram, viu-se que não era bem assim. Que não saberíamos o que foram os anos 30 sem Humberto Mauro, os 40 sem o DIP, os 50 sem Nelson Pereira. O cinema é a memória palpável do século 20.” (22) ARAÚJO, Inácio. Fenômeno reflete ausência de política para o cinema. Folha de S. Paulo, 13 de junho de 1998.

A euforia gerada pelos recordes de bilheteria de alguns dos filmes do cinema nacional contemporâneo também é relativizada pelo diretor José Joffily. “Creio que, para quem é veterano, essa história de renascimento do cinema brasileiro já foi vista tantas vezes... O cinema brasileiro vive de ciclos, e cada vez que um novo ciclo surge, todos chamam de renascimento. Não tenho nada contra esse termo criado pela mídia, quem quiser usar que use. A questão do audiovisual no Brasil passa a ser mais discutida, é uma questão estratégica no mundo de hoje” (23) (Apud NAGIB, 2002 : 238) Lúcia Nagib no livro O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90..

Já a professora Lúcia Nagib argumenta que “a expressão retomada que ressoa como um boom ou um movimento cinematográfico está longe de alcançar unanimidade mesmo entre seus participantes” (24) (Apud NAGIB, 2002: 13) Lúcia Nagib no livro O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90.. Segundo ela, para alguns, o que houve foi apenas uma breve interrupção da atividade cinematográfica com o fechamento da Embrafilme, a seguir reiniciada com o rateio dos próprios recursos da produtora extinta, através do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. O fenômeno foi acentuado com a Lei do Audiovisual - aperfeiçoamento das leis de incentivo fiscal anteriores - que começou a gerar frutos a partir de 1995.

O ceticismo que se observa nos trechos revela uma visão de que “a retomada” pode vir a ser mais um ciclo da produção devido à ausência de uma indústria cinematográfica no país. Houve uma mudança de paradigma: a intervenção direta do Estado, materializada pela Embrafilme, é substituída por uma dependência dos departamentos de marketing das empresas. É uma retomada na capacidade de produzir, porém, não há uma preocupação governamental em desenvolver uma política cinematográfica com o objetivo de sustentar o setor de forma mais sólida no país.

Alguns críticos e estudiosos do cinema, como Lúcia Nagib e Luiz Zanin Oricchio consideram a “fase da retomada” finalizada. Para eles, o cinema brasileiro não pode viver um eterno "retomar". As leis de incentivo, apesar de suas limitações e defeitos, permitiram que mais de duas centenas de filmes fossem feitos de 1995 a 2002. Oricchio toma o impacto e êxito de público de Cidade de Deus como fecho simbólico do período, enquanto Lúcia acredita que este término se dá com o filme Central do Brasil. Já o crítico Pedro Butcher prefere ver a “retomada” como "um processo ainda em curso e que não necessariamente terá um fim ou um marco simbólico" (25) BUTCHER, Pedro. Cinema Brasileiro Hoje. São Paulo: Publifolha, 2005..

O cineasta Gustavo Dahl recorre a Paulo Emílio Salles Gomes em um artigo publicado no Jornal do Brasil, em 1998, para trazer uma reflexão sobre a produção cinematográfica brasileira ampliando a discussão de políticas de incentivo. “O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes” (26) DAHL, Gustavo. Cinema Brasileiro: e agora? Rio de janeiro: Jornal do Brasil, 28 de agosto de 1998..

Jean-Claude Bernardet também discute esta, que parece uma crise inerente ao cinema brasileiro. O crítico afirma que no Brasil “pensa-se em cinema até a primeira cópia, depois são outros quinhentos. Tal filosofia marca o conjunto da produção cinematográfica e conhece poucas exceções, entre elas a chanchada e a pornochanchada” (27) BERNARDET, Jean-Claude. Acreditam os Brasileiros nos seus Mitos: O cinema brasileiro e suas origens. in Revista USP nº 19. São Paulo: USP, Setembro/ Outubro/ Novembro 1993, pg. 20.. José Geraldo Couto sinaliza mais dois problemas que acompanham o cinema nacional e contribuem para a fragilidade da atividade no país, que seriam o vício do paternalismo do Estado e o fato dos diretores se conformarem com guetos e espaços alternativos dentro do próprio país (28) COUTO, José Geraldo. “Um diálogo de surdos: Reflexões a partir de Não quero falar sobre isso agora” in Revista USP nº 19. São Paulo: USP, Setembro/ Outubro/ Novembro 1993, pg. 95..

Em outro artigo em que analisa a situação do cinema nacional dos anos 90, Bernardet levanta uma hipótese para justificar a dificuldade de se estabelecer uma produção cinematográfica auto-sustentável no país. Segundo ele, há no Brasil uma insistência em um cinema autoral, dispensando a figura do produtor e desvinculado de preocupações com o público que impossibilita a existência de uma produção regular e estável. “Esse modelo – o cinema de autor – vem desde os tempos do cinema mudo e foi levado ao apogeu pelo Cinema Novo e Cinema Marginal, e sua dependência do Estado consolidada nos anos 70 não parece oferecer saída. Isso não quer dizer que esporadicamente não aparecerá um ou outro filme belíssimo. Mas quer dizer que por aí não há saída estrutural, isto é, uma produção que tenha público e consiga repor seus meios de produção.” (29) BERNARDET, Jean-Claude. A crise do cinema brasileiro e o governo Collor. Folha de S. Paulo, 23 de junho de 1990. Para Bernardet, uma possível solução para este problema seria uma maior atuação dos produtores no cinema nacional. Eles viabilizariam filmes para o mercado, com diretores contratados, assim como acontece em diversos países que têm indústrias cinematográficas bem resolvidas. O cinema no Brasil deveria deixar de ser unicamente artístico para se tornar um produto da indústria cultural. Desta forma, a indústria cinematográfica poderia se sustentar, permitindo inclusive a realização de filmes autorais. Além de uma produção mais comercial, são apontadas como formas de restabelecer a relação entre o cinema nacional e seu público, uma política de estímulo à exibição, incentivando a criação de salas e o barateamento dos ingressos.

O que se observa nos debates sobre o cinema contemporâneo é uma luta pela consolidação de um sistema de intervenção do Estado na atividade cinematográfica e audiovisual que atendam às exigências do desenvolvimento cultural, social e econômico do Brasil, e que compreendam a produção audiovisual como uma expressão da identidade cultural do país, assim como um investimento econômico estratégico, tendo em vista que as maiores atividades econômicas das próximas décadas estarão relacionadas às indústrias culturais e à comunicação.

Novembro de 2008